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Documento 52005AB0007

Parecer do Banco Central Europeu, de 17 de Março de 2005, solicitado pelo Conselho da União Europeia sobre uma proposta de decisão do Conselho respeitante à assinatura da Convenção da Haia relativa à legislação a aplicar a certos direitos respeitantes a valores mobiliários detidos junto de intermediários [COM (2003) 783 final] (CON/2005/7)

JO C 81 de 2.4.2005, p. 10—17 (ES, CS, DA, DE, ET, EL, EN, FR, IT, LV, LT, HU, NL, PL, PT, SK, SL, FI, SV)

2.4.2005   

PT

Jornal Oficial da União Europeia

C 81/10


PARECER DO BANCO CENTRAL EUROPEU

de 17 de Março de 2005

solicitado pelo Conselho da União Europeia sobre uma proposta de decisão do Conselho respeitante à assinatura da Convenção da Haia relativa à legislação a aplicar a certos direitos respeitantes a valores mobiliários detidos junto de intermediários [COM (2003) 783 final]

(CON/2005/7)

(2005/C 81/08)

Introdução

1.

Em 31 de Janeiro de 2005 o Banco Central Europeu (BCE) recebeu do Conselho da União Europeia um pedido de parecer sobre uma proposta de decisão do Conselho respeitante à assinatura da Convenção da Haia relativa à legislação a aplicar a certos direitos respeitantes a valores mobiliários detidos junto de intermediários (a seguir a «decisão proposta») (1).

2.

A competência do BCE para emitir parecer resulta do disposto no primeiro travessão do n.o 4 do artigo 105.o do Tratado que institui a Comunidade Europeia. A decisão proposta tem por único objectivo autorizar a assinatura da Convenção em nome da Comunidade. A decisão proposta é uma «proposta de acto comunitário» na acepção do n.o 4 do artigo 105.o do Tratado, pelos seguintes motivos:

os acordos internacionais vinculam a Comunidade e são parte integrante do direito comunitário (2); e

a decisão de uma instituição comunitária de autorizar a assinatura, em nome da Comunidade, de uma convenção internacional destinada a produzir efeitos jurídicos na Comunidade é um acto comunitário (3).

A Convenção diz directamente respeito aos domínios da competência do Eurosistema e do BCE pelas consequências que poderá ter:

i)

para o bom funcionamento, a eficiência e a solidez dos sistemas de compensação e de pagamentos da área do euro (n.o 2 do artigo 105.o do Tratado e artigos 3.o-1 e 22.o dos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu); e

ii)

para a definição e execução da política monetária da área do euro (n.o 2 do artigo 105.o do Tratado e artigo 3.o-1 dos Estatutos), tendo em conta, nomeadamente, a obrigação do Eurosistema de efectuar as suas operações de crédito com base em garantias adequadas (artigo 18.o-1 dos Estatutos).

O BCE nota igualmente que a Convenção, se vier a ser assinada e ratificada pela Comunidade, afectará directamente após a sua entrada em vigor disposições-chave da legislação comunitária sobre as quais o BCE e o Instituto Monetário Europeu (IME) foram consultados no passado (4).

O presente parecer foi aprovado pelo Conselho do BCE nos termos do artigo 17.o-5, primeiro período, do regulamento interno do BCE.

3.

A Convenção pretende estabelecer um regime de conflitos de leis universalmente aplicável que determine a lei aplicável a certas questões em matéria de detenção, transferência e prestação em garantia (colateral) de valores mobiliários creditados em contas de valores mobiliários (a seguir «valores mobiliários escriturais») detidos junto de um intermediário num contexto internacional. Como se refere no seu preâmbulo, a Convenção é justificada pela «necessidade prática urgente, num mercado financeiro global cada vez mais alargado, de garantir a segurança e previsibilidade jurídicas relativamente à legislação aplicável a valores mobiliários que em geral são, actualmente, detidos através de sistemas de liquidação e compensação ou de outros intermediários», tendo por objectivo a «redução dos riscos jurídico e sistémico e dos custos associados… para facilitar o fluxo internacional dos capitais e o acesso aos mercados de capitais». A essência do regime da Convenção consta do n.o 1 do artigo 4.o. Nos termos desta disposição, a lei aplicável às questões abrangidas pela Convenção é a lei em vigor no Estado que o intermediário relevante e o titular de conta expressamente convencionaram como regendo o acordo de conta, ou a lei do Estado que este acordo expressamente designar como aplicável a estas questões. A conexão principal é mitigada pela denominada «prova de realidade», dado que a Convenção também exige que o intermediário relevante possua, no momento da celebração do acordo, um estabelecimento nesse Estado onde exerça, a título profissional ou habitual, actividades de contabilização regular de contas de valores mobiliários (a seguir «requisito do estabelecimento relevante»). Por conseguinte, a Convenção prevê um regime de conflitos de leis fundamentalmente assente na liberdade contratual do intermediário relevante e do titular de conta, tendo por único limite o requisito do «estabelecimento relevante», que se destina a evitar escolhas totalmente arbitrárias. A Convenção estabelece três conexões subsidiárias para a determinação da lei a aplicar no caso de as partes no acordo de conta não terem expressamente procedido a essa escolha.

4.

A Convenção não determina apenas a legislação aplicável à natureza jurídica e à oponibilidade aos intermediários dos direitos resultantes do lançamento a crédito de valores mobiliários numa conta de valores mobiliários ou da transferência de valores mobiliários detidos junto de um intermediário. Determina também a lei a aplicar à natureza jurídica e à oponibilidade a terceiros dos direitos resultantes desse crédito ou dessa transferência, bem como à questão de saber se o direito de uma pessoa sobre valores mobiliários detidos junto de um intermediário extingue ou prevalece sobre os direitos de outra. Dada a definição lata do requisito de «carácter internacional» contida no artigo 3.o da Convenção, que inclui «todos os casos que implicam uma escolha entre a legislação de diferentes Estados», a Convenção aplicar-se-ia, para além dos casos tradicionais de conflitos de leis, a todas as situações de valores mobiliários escriturais que contenham um elemento externo (ver os pontos 3-1 a 3-5 do relatório explicativo da Convenção da Haia relativa à legislação a aplicar a certos direitos respeitantes a valores mobiliários detidos junto de intermediários (a seguir «Relatório sobre a Convenção da Haia»), bem como os pontos 3-8 e 3-9, que ilustram o alcance do requisito do «carácter internacional»).

Considerações genéricas

5.

O BCE reconhece que é fundamental garantir a certeza jurídica ex ante relativamente à lei aplicável a certas questões relativas à detenção, transferência e prestação em garantia de valores mobiliários escriturais detidos junto de intermediários num contexto internacional, bem como reduzir os riscos sistémicos que poderiam resultar de incertezas nesta matéria. O BCE também reconhece as vantagens de se instituir um regime de conflitos de leis uniforme e universalmente aplicável, como o é regime da Convenção, para aumentar a eficiência e a flexibilidade dos mercados financeiros tanto europeus, como mundiais. Por conseguinte, o BCE congratula-se, em termos gerais, com os objectivos da Convenção.

6.

Quando consultado pelo Conselho sobre a directiva relativa aos acordos de garantia financeira, o BCE observou o seguinte5: «o BCE apoia o reforço da segurança jurídica relativamente à utilização transfronteiras de activos sob forma escritural por meio da adopção de uma regra única e clara para a determinação do local da situação desses bens, formulada e desenvolvida com base nos princípios contidos na Directiva relativa ao carácter definitivo da liquidação. Tal facto iria não só contribuir para a eficácia das operações, necessárias à realização da política monetária única, pelas quais o Eurosistema fornece liquidez às suas contrapartes contra garantia, tanto no contexto nacional como transfronteiras, mas também para o aumento da segurança jurídica e da eficácia das operações mediante as quais os operadores do mercado monetário repartem essa liquidez pelo conjunto do mercado, compensando entre si os excedentes e défices individuais de liquidez… Neste contexto, o BCE insta as entidades competentes, em especial os Estados-Membros, a tentar encontrar, no âmbito dos debates em curso sobre um projecto de convenção relativa à “lei aplicável às alienações de títulos detidos através de sistemas de participações indirectas” ao nível da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, uma solução que seja compatível com os princípios enunciados tanto no artigo 10.o da directiva proposta como no n.o 2 do artigo 9.o da Directiva relativa ao carácter definitivo das liquidações» (5).

7.

O BCE nota também que a Comunidade tem acertadamente procurado responder às questões relacionadas com a aplicação do princípio tradicional da lex rei sitae aos valores mobiliários escriturais, através da formulação de normas de conflitos que rejeitam o método da «transparência» (look-through approach) e determinam a lei aplicável com base no lugar onde a conta relevante está localizada ou registada ou é mantida.

Neste contexto, o BCE chama a atenção para a legislação comunitária sobre sistemas de pagamento e liquidação (6), processos de insolvência em geral (7), saneamento e liquidação das empresas de seguros (8) e das instituições de crédito (9) em particular e sobre acordos de garantia financeira (10).

8.

O BCE nota igualmente que o regime finalmente adoptado pelos autores da Convenção diverge significativamente do regime de direito internacional privado actualmente aplicável nos Estados-Membros à detenção intermediada de valores mobiliários escriturais, que tem por base a legislação comunitária acima referida. O BCE regista os motivos apresentados no Relatório sobre a Convenção da Haia para explicar esta divergência (ver pontos Int-41 a 46, 4-4 e 4-24 a 4-25). O BCE está ciente de que num sistema financeiro global progressivamente integrado pode, por vezes, ser difícil situar uma conta de valores mobiliários num determinado ordenamento jurídico para efeitos de conflito de leis. O BCE reconhece os desafios que se colocam neste domínio aos participantes nos mercados financeiros com actividades transfronteiras e pretende contribuir de forma construtiva para a adopção de um regime universalmente aplicável e uniforme.

9.

Não obstante, o BCE considera que a actual legislação comunitária tem contribuído significativamente para o aumento da certeza jurídica e para a redução do risco sistémico na Comunidade. É, pois, necessário avaliar cuidadosamente se a abordagem proposta pela Convenção proporcionaria, em determinados aspectos essenciais, um maior nível de certeza jurídica e de protecção contra o risco sistémico quando comparada com a legislação comunitária em vigor. O BCE considera que a Convenção suscita um certo número de questões potencialmente relevantes a este respeito, que mereceriam uma análise mais aprofundada por parte da Comunidade antes de uma tomada de decisão quanto à substituição do regime em vigor pelo da Convenção. O BCE propõe uma abordagem destas questões no âmbito de uma avaliação abrangente do impacto da Convenção do ponto de vista da Comunidade (ver ponto 20).

Considerações específicas

Diversidade de leis aplicáveis no âmbito de um sistema ou depositário

10.

À semelhança do que observou em pareceres anteriores sobre projectos de legislação nacional para transposição da Directiva relativa aos acordos de garantia financeira, o BCE gostaria de realçar que todas as partes envolvidas no processo legislativo deveriam avaliar cuidadosamente o impacto potencial da Convenção sobre a estabilidade sistémica e o tratamento das operações de garantia, de forma a não comprometer o nível de protecção actual. Tal poderia implicar, nomeadamente, restringir a escolha da lei aplicável aos direitos de propriedade sobre valores mobiliários detidos em contas junto de um sistema importante do ponto de vista sistémico (em especial, sistemas de liquidação dos valores mobiliários avaliados e utilizados pelo Eurosistema) à lei que rege esse sistema, bem como outras medidas destinadas a proteger o carácter definitivo, a segurança e a transparência em termos sistémicos12. Neste contexto, o BCE chama também a atenção para os Standards for Securities Clearing and Settlement in the European Union (Normas para a compensação e liquidação de valores mobiliários na União Europeia) publicados pelo BCE e pelo Comité das Autoridades de Regulamentação dos Mercados Europeus de Valores Mobiliários (CARMVEM) (a seguir «Normas SEBC-CARMVEM»)13. Estas normas contêm princípios destinados a garantir a segurança, a solidez e a eficiência da compensação e liquidação de valores mobiliários. A norma 1 prevê que os sistemas de compensação e liquidação de valores mobiliários, bem como as ligações entre sistemas, devem assentar em bases jurídicas sólidas, claras e transparentes nos respectivos ordenamentos. Como se refere na página 15 do relatório SEBC/CARMVEM de 15 de Setembro de 2004, esta norma, que tem por destinatários, entre outros, as centrais de depósitos de títulos (central securities depositories/CSD) e as entidades de guarda relevantes, preconiza, para efeitos de protecção contra o risco sistémico, que seja promovida a harmonização das normas, de forma a minimizar eventuais divergências resultantes da diversidade de normas e de quadros jurídicos nacionais. Em particular, a aplicação de leis de uma multiplicidade de ordenamentos no mesmo sistema aumenta a complexidade jurídica e pode afectar a estabilidade sistémica. A Directiva relativa ao carácter definitivo da liquidação reduziu estes riscos, estabelecendo regras claras quanto à lei que rege o sistema e quanto à lei que rege os direitos e as obrigações dos participantes em situação de insolvência. No mesmo sentido, a variedade de ordenamentos jurídicos escolhidos em conexão com um sistema deverá ser limitada ao mínimo possível. Sob reserva de uma análise do risco jurídico, poderá revelar-se aconselhável que seja escolhido um único ordenamento jurídico para regular os aspectos patrimoniais da totalidade dos valores mobiliários creditados nas contas dos participantes junto do sistema e que seja escolhido um mesmo ordenamento para regular os aspectos contratuais da relação entre o sistema e cada um dos seus participantes. Idealmente, a lei escolhida deveria ser a mesma que a lei que rege o sistema, de forma a salvaguardar o carácter definitivo, a segurança e a transparência em termos sistémicos (ver o relatório do SEBC/CARMVEM de Setembro de 2004, ponto 37 ).

11.

Por força do regime comunitário em vigor, o ordenamento cuja lei regula um sistema de liquidação de valores mobiliários (securities settlement system/SSS) ou uma CSD coincide com o ordenamento cuja lei regula os aspectos reais dos direitos decorrentes dos valores mobiliários escriturais detidos junto desse SSS ou dessa CSD, garantindo assim a segurança jurídica e a transparência e prevenindo o risco sistémico. Comparativamente com o regime actual, não é seguro que a Convenção, aumentando presumivelmente a certeza jurídica em torno das dificuldades práticas em localizar uma conta de valores mobiliários para efeitos de conflitos de leis, não venha em simultâneo suscitar a incerteza jurídica ao permitir a eclosão de diversos conflitos entre leis aplicáveis divergentes no seio do mesmo SSS ou CSD. De facto, a determinação da lei aplicável aos direitos decorrentes de valores mobiliários escriturais com base na lei escolhida no acordo entre o SSS ou a CSD e o titular da conta poderia, teoricamente, conduzir à aplicação de várias leis reguladoras das questões patrimoniais no seio dum mesmo SSS ou CSD, incluindo uma ou mais leis externas ao ordenamento onde o SSS ou a CSD se situa ou mesmo externas à Comunidade. Se estas leis não estiverem harmonizadas, os efeitos desta diversidade no carácter definitivo da liquidação, em especial quando a ou as leis escolhidas no acordo de conta não oferecerem uma protecção comparável à conferida pela Directiva relativa ao carácter definitivo da liquidação, poderiam eventualmente comprometer a solidez do sistema no seu todo e acarretar riscos sistémicos. Além disso, esta diversidade, a juntar à aplicação da lei de um país terceiro, poderia complicar o exercício das funções de supervisão e de regulação dos SSS ou das CSD pelas autoridades competentes do ordenamento jurídico em que os mesmos se situam.

12.

O BCE admite que os SSS ou as CSD situados na Comunidade possam não ter, na prática, a intenção de permitir que as questões patrimoniais relacionadas com os valores mobiliários escriturais nos seus sistemas sejam reguladas por uma diversidade de leis, porquanto tal solução comprometeria a fungibilidade dos valores mobiliários detidos, transferidos ou prestados em garantia no seio do sistema e debilitaria a protecção do carácter definitivo concedida aos participantes do sistema ao abrigo da Directiva relativa ao carácter definitivo da liquidação, nem de permitir que estas questões sejam reguladas por uma única outra lei que não a que rege o sistema por força da referida directiva. Sem embargo, não há garantia de que esta situação não se verificará se a Convenção vier a ser assinada e ratificada. Considerando esta possibilidade, o BCE é de opinião que as implicações da Convenção para a Comunidade no que respeita ao carácter definitivo da liquidação e às questões de liquidação e de guarda a ela inerentes são significativas e potencialmente geradoras de riscos sistémicos. Este aspecto merece também uma análise mais profunda, no âmbito de uma avaliação de impacto da Convenção a nível comunitário (ver o ponto 20).

Direitos de terceiros

13.

No que respeita ao impacto da Convenção nos direitos de terceiros, o BCE nota, antes de mais, que, quando o credor de um titular de conta obtém a apreensão dos valores mobiliários, a lei escolhida por força da Convenção determinará a prioridade dos direitos do credor interessado sobre os valores mobiliários e as obrigações do intermediário para com este credor (alíneas d) e e) do n.o 1 do artigo 2.o da Convenção). A lei determinada ao abrigo da Convenção não será necessariamente a lei aplicável aos requisitos jurisdicionais e processuais da apreensão e à subsequente execução, à luz das normas actualmente em vigor em diversos Estados-Membros, que dispõem que a apreensão e a execução de valores mobiliários escriturais são reguladas pela lei e estão sujeitas à jurisdição dos tribunais do lugar onde os valores mobiliários se situem. Ainda que deixe inalterados os actuais requisitos jurisdicionais e processuais da apreensão e da execução, questão que não analisamos por ora, a Convenção pode induzir alterações significativas na prática judicial. Pode, nomeadamente, aumentar substancialmente o número de casos em que um tribunal, tendo jurisdição sobre os procedimentos de apreensão ou execução de valores mobiliários escriturais, seria chamado a aplicar uma lei estrangeira – ou seja, a lei aplicável por força da Convenção – para determinar a natureza e a prioridade dos direitos do credor interessado sobre os valores mobiliários apreendidos. Os autores do projecto da Convenção revelaram-se sensíveis a este risco, observando que «a lei aplicável às questões da propriedade deve ser a lei do lugar onde são conservados os registos desse direito e onde, portanto, as decisões relativas à propriedade podem efectivamente ser executadas» (11). Os privilégios creditórios legais constituem outro exemplo do impacto da Convenção nos direitos de terceiros. Se bem que limitado a certos privilégios a favor do intermediário do titular da conta (alínea c) do n.o 2 do artigo 1.o da Convenção), o âmbito de aplicação da Convenção pode, não obstante, afectar consideravelmente outros privilégios legais sobre valores mobiliários escriturais (como é o caso dos privilégios fiscais), porquanto a lei da Convenção determinará, por exemplo, a prioridade destes privilégios (ver ponto 1-31 do Relatório sobre a Convenção da Haia).

14.

Além disso, se bem que uma parte numa transacção de valores mobiliários escriturais possa, pelo menos contratualmente, obrigar a sua contraparte a prestar informações acerca da lei escolhida no acordo de conta relevante, a Convenção carece de transparência relativamente a terceiros. Os terceiros, como sejam os credores de um titular de conta pretendendo obter a apreensão de valores mobiliários para proteger ou satisfazer um crédito, podem deter direitos concorrentes sobre os valores mobiliários ou, pelo menos, um interesse legítimo em determinar a localização desse valores. Para além das possíveis proibições legais à divulgação aplicáveis ao intermediário relevante e/ou das disposições insertas para o efeito no acordo de conta, será muito difícil para terceiros obter do titular de conta informações acerca da lei escolhida no acordo entre este e o respectivo intermediário. Conquanto nem sempre seja fácil a terceiros determinar o lugar onde os seus devedores mantêm contas de valores mobiliários escriturais ao abrigo de um regime de direito internacional privado baseado na localização da conta, o regime de liberdade de escolha da Convenção implica que a lei aplicável aos valores mobiliários escriturais para efeitos de exercício de direitos concorrentes de terceiros, por exemplo através de apreensão, dependa e varie segundo o critério subjectivo da lei escolhida no acordo de conta, acordo este que é muitas vezes confidencial e pode ser alterado precisamente com o intuito de mudar esta lei (n.o 1 do artigo 7.o da Convenção). Os possíveis efeitos da Convenção sobre os direitos e as expectativas legítimas de terceiros ilustrados no presente parágrafo e nos anteriores constituem um motivo acrescido para a realização de uma avaliação prévia do impacto da Convenção (ver ponto 20).

Harmonização das normas de direito substantivo dos valores mobiliários

15.

As potenciais implicações ao nível da certeza jurídica da regra de conflitos estabelecida pela Convenção não emergiriam se as normas de direito substantivo aplicáveis à detenção, transferência e prestação em garantia de valores mobiliários escriturais detidos junto de intermediários fossem idênticas em toda a Comunidade ou se a lei de um terceiro país fosse aplicável a nível global. O BCE é, pois, de opinião que, apesar do contributo efectivo de normas de conflitos claras e harmonizadas para afastar a incerteza do âmbito da detenções transfronteiras e intermediadas de valores mobiliários escriturais, qualquer reforma do direito internacional privado nesta matéria deveria ser integrada numa reforma de maior alcance, que englobasse aspectos de direito substantivo. Uma tal reforma e harmonização do direito substantivo reduziria decerto o impacto das escolhas contratuais da lei aplicável. A este respeito, o BCE acolhe com especial agrado a criação e o trabalho do grupo de peritos da Comissão Europeia para questões de certeza jurídica em matéria de compensação e liquidação (a seguir «Projecto sobre Certeza Jurídica»), que constitui uma oportunidade única para conjugar ambas as reformas e alcançar uma solução única e coerente, conforme advoga a Comissão. Além disso, tendo em vista uma crescente integração dos mercados financeiros mundiais, o BCE acompanha de perto os progressos da Unidroit na harmonização global do direito substantivo dos valores mobiliários escriturais através do seu anteprojecto de convenção sobre a harmonização das normas substantivas aplicáveis aos valores mobiliários detidos junto de intermediários (a seguir o «Anteprojecto de Convenção da Unidroit»). Refira-se, a este propósito, que a Unidroit reconhece também os inconvenientes de uma reforma isolada das normas de conflitos, observando que, «mesmo em presença de uma regra de conflitos clara e fiável, é possível que as leis de dois ou mais Estados regulem a totalidade de uma dada situação… visto que a análise do conflito de leis não dará necessariamente a mesma resposta a cada um dos aspectos de uma situação complexa» (ver notas explicativas ao Anteprojecto de Convenção da Unidroit, página 10; ver também ponto 17). Considerando a legislação comunitária em vigor nesta matéria, o BCE não está convencido de que a Comunidade tenha uma necessidade imperativa ou urgente de adoptar a Convenção, e recomenda a sincronização da harmonização das normas de conflitos com a harmonização do direito substantivo, pelo menos ao nível comunitário.

Interferência de outras leis

16.

O facto de a Convenção não garantir por si só a aplicação de uma única lei às matérias que regula constitui um outro elemento a contender com a certeza jurídica. Com efeito, a Convenção prevê que a aplicação da lei determinada por força das suas disposições pode ser recusada se os efeitos dessa aplicação forem manifestamente contrários à ordem pública do foro que é chamado a aplicar a Convenção (n.o 1 do artigo 11.o da Convenção, que contém a tradicional excepção de «ordem pública»). Além disso, a Convenção também não afasta a aplicação das disposições do Estado do foro que prevalecem sobre as disposições da lei aplicável por força do direito internacional privado, mesmo em situações com elementos externos (n.o 2 do artigo 11.o da Convenção, que contém a tradicional excepção da «lei imperativa»). Conquanto o n.o 3 do artigo 11.o da Convenção limite as interferências dos princípios de ordem pública ou das normas imperativas, cabe perguntar se serão tão «extraordinariamente raros os casos» (ver ponto 11-1 do Relatório da Convenção da Haia) em que um tribunal afasta ou restringe a aplicação da lei determinada pela Convenção invocando o n.o 1 ou 2 do seu artigo 11.o. Por exemplo, um Estado em que está situado um SSS ou uma CSD pode adoptar normas imperativas com o intuito, entre outros, de assegurar que a infraestrutura dos valores mobiliários, incluindo as contas de valores mobiliários, assenta num quadro legal e operacional sólido e eficaz.

17.

De um modo geral, e independentemente da interferência directa prevista nos n.os 1 e 2 do artigo 11.o da Convenção, o BCE observa que, em numerosos ordenamentos, um número significativo de outras leis aplicáveis a várias questões relativas a valores mobiliários e/ou a contas de valores mobiliários, e que revestem muitas vezes natureza de direito público, remetem, quanto à sua aplicação, para a localização (situs) destes valores e destas contas. Ao abrigo da legislação comunitária aplicável aos aspectos patrimoniais dos valores mobiliários, a lex situs coincide com a lei que rege estes aspectos patrimoniais. Se o regime em vigor for substituído pelo da Convenção, e ainda que estas outras leis possam tratar de questões não enunciadas no n.o 1 do artigo 2.o da Convenção, estas outras leis e a lei da Convenção podem, directa ou indirectamente, interferir entre si. A Unidroit também confirma esta possibilidade: «pode tratar-se de aspectos, por exemplo, de direito das obrigações, dos contratos, das sociedades, da insolvência, das coisas e dos valores mobiliários que podem ou não estar sujeitos a disposições de conflitos de leis, e estas disposições podem apontar para Estados diferentes em determinadas questões… Todavia, algumas lacunas legislativas não previstas, a falta de clareza, as complexidades ou obstáculos podem impedir a obtenção de um resultado jurídico sólido, pelo menos num lapso de tempo razoável. As complexidades existentes no quadro jurídico nacional podem criar dificuldades no que respeita aos aspectos regulados por outra lei, etc. Pode, portanto, afirmar-se que a detenção e a transmissão transfronteiras são susceptíveis de multiplicar a incerteza jurídica» (ver notas explicativas ao Anteprojecto de Convenção da Unidroit, página 10). Esta interferência pode, por exemplo, verificar-se relativamente à compilação de informação estatística pelo BCE (ver artigo 5.o dos Estatutos), domínio em que se procura minimizar as formalidades de reporte dentro do quadro jurídico vigente e em que uma alteração do actual regime de conflitos de leis pode afectar a prestação de informação sobre transacções e posições transfronteiras de valores mobiliários. A possibilidade de um relacionamento de interferência entre uma norma de conflitos e o quadro envolvente de outras leis aplicáveis milita também a favor de uma avaliação prévia abrangente do impacto da Convenção na Comunidade e de uma harmonização do direito substantivo dos valores mobiliários (ver ponto 20).

Possibilidade de exclusão

18.

Finalmente, o BCE nota que, como se refere no ponto 1-37 do Relatório da Convenção da Haia, a possibilidade de exclusão do âmbito de aplicação da Convenção de certos SSS ou CSD específicos em determinadas circunstâncias, prevista nos termos do n.o 5 do artigo 1.o da Convenção, pode ser relevante para outros sistemas similares. Os efeitos desta exclusão nas actividades dos SSS e nos valores mobiliários escriturais detidos junto destes sistemas não foram ainda analisados e carecem, por conseguinte, de uma avaliação aprofundada.

Considerações finais

19.

Dado que a consulta respeita à questão da assinatura de uma convenção internacional em nome da Comunidade, o presente parecer cinge-se a observações gerais com interesse directo para o aconselhamento do Conselho quanto à aprovação ou não da assinatura da Convenção. O BCE tem outros comentários técnicos e jurídicos a formular acerca da Convenção, mas considera que a sua apresentação seria mais oportuna no contexto de uma avaliação de impacto a realizar pela Comunidade.

20.

Em síntese, a legislação comunitária actualmente em vigor sobre a lei aplicável à detenção, transmissão e prestação em garantia de valores mobiliários escriturais intermediados detidos junto de intermediários constituiu um progresso em termos de certeza jurídica e de protecção contra o risco sistémico na Comunidade. A Convenção oferece uma abordagem possível para responder a questões legítimas suscitadas pela dificuldade em identificar claramente a localização de uma conta de valores mobiliários para fins de escolha de lei num sistema financeiro global em crescente integração. O BCE apoia o objectivo de instituir um regime de direito internacional privado universalmente aplicável nesta área; porém, tendo em conta as possíveis implicações da Convenção e a legislação comunitária em vigor, veria com bons olhos uma avaliação prévia aprofundada do impacto da Convenção na Comunidade. O BCE e o Eurosistema atribuem a maior importância aos aspectos da Convenção relativos ao risco sistémico e estão preparados para contribuir para a avaliação do impacto desses riscos, no âmbito das atribuições que o n.o 5 do artigo 105.o do Tratado confere ao Eurosistema. Para não antecipar o resultado de uma tal avaliação, conviria que a sua realização precedesse qualquer discussão acerca da possível assinatura da Convenção, sendo certo que o regime comunitário em vigor é suficientemente satisfatório e não exige uma assinatura urgente ou imperativa da Convenção. A referida avaliação não prejudica as iniciativas da Comunidade nas áreas da compensação e da liquidação, nem a necessidade de uma reforma e de uma harmonização céleres do direito substantivo dos valores mobiliários escriturais, capazes de promover a integração financeira na Comunidade.

Feito em Frankfurt am Main, em 17 de Março de 2005.

O Presidente do BCE

Jean-Claude TRICHET


(1)  COM(2003) 783 final.

(2)  Ver, por exemplo, o acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 30 de Abril de 1974 (C-181/73, R. & V. Haegeman/Estado Belga, Colect., p. I-449), ponto 5.

(3)  Ver, por exemplo, o acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 9 de Agosto de 1994 (C-327/91, República Francesa/Comissão das Comunidades Europeias, Colect. p. I-3641), pontos 15 a 17.

(4)  Ver o Parecer CON/2001/13 do BCE, de 13 de Junho de 2001, solicitado pelo Conselho da União Europeia sobre uma proposta de directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos acordos de garantia financeira (JO C 196 de 12.7.2001, p. 10), os Pareceres do IME CON/96/09 sobre uma proposta de directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao carácter definitivo da liquidação e à constituição de garantias (JO C 156 de 21.5.1998, p. 17) e CON/96/02 relativo a uma consulta do Conselho da União Europeia, em conformidade com o n.o 6 do artigo 109.o-F do Tratado que institui a Comunidade Europeia (a seguir designado «Tratado») e ainda o artigo 5.o-3 dos Estatutos do IME, sobre uma proposta alterada de directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao saneamento e liquidação de instituições de crédito (JO C 332 de 30.10.1998, p. 13).

(5)  Directiva 2002/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Junho de 2002, relativa aos acordos de garantia financeira (JO L 168 de 27.6.2002, p. 43).

(6)  Ver o Parecer CON/2001/13 do BCE, pontos 6 e 19.

(7)  Ver o n.o 2 do artigo 9.o da Directiva 98/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Maio de 1998, relativa ao carácter definitivo da liquidação nos sistemas de pagamentos e de liquidação de valores mobiliários (JO L 166 de 11.6.1998, p. 45; a seguir «directiva relativa ao carácter definitivo da liquidação»). Ver também o Parecer CON/96/09 do IME.

(8)  Ver o terceiro travessão do artigo 14.o do Regulamento (CE) n.o 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (JO L 160 de 30.6.2000, p. 1).

(9)  Ver a alínea c) do artigo 25.o da Directiva 2001/17/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Março de 2001, relativa ao saneamento e à liquidação das empresas de seguros (JO L 110 de 20.4.2001, p. 28).

(10)  Ver o artigo 24.o e o terceiro travessão do artigo 31.o da Directiva 2001/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Abril de 2001, relativa ao saneamento e à liquidação das instituições de crédito (JO L 125 de 5.5.2001, p. 15). Ver também o Parecer CON/96/02 do IME.

(11)  Ver o n.o 1 do artigo 9.o em conjugação com a alínea h) do n.o 1 do artigo 2.o da Directiva 2002/47CE. Ver também o Parecer CON/2001/13 do BCE.


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